Literatura Latina IV

Nesta UC, o nível mais avançado de Literatura Latina, são habitualmente dois os autores estudados: Séneca e Tácito. Uns anos mais Séneca, outros anos mais Tácito. Porquê? Poderíamos escolher um sem-número de razões, mas ficamo-nos por uma: porque são dois autores extraordinários, que vale a pena ler. Dito assim, parece uma banalidade inconsequente, mas não é. A verdade é que a leitura do que ambos escreveram, de modo sublime, permite-nos reconhecer a força e a fraqueza do homem de todos os tempos, na reflexão sobre questões universais e sem tempo, que são nossas, em interrogação e dúvida, em esperança e decepção.

Com Séneca aprende-se a não temer nem desejar a morte, a aceitá-la como parte da vida, e a lidar com o luto, o sofrimento, a dor da perda daqueles que amamos, a inevitabilidade e a iminência do nosso próprio fim. Com Séneca percebemos a diferença entre viver – muito ou pouco, não vem ao caso, mas viver plenamente –, e existir, durar, num simples acumular de dias, de anos, mergulhados em ocupações que nos tomam o tempo e nos roubam a consciência de nós mesmos. Com Séneca definimos a fronteira do único que é nosso, o exacto momento presente que, no mesmo segundo, é passado, e portanto se perde e (já) não é nosso, quando o futuro nem é mais que possibilidade. Com Séneca, ganhamos consciência de que o conhecimento e o saber nos libertam dos mais terríveis receios e do obscurantismo, porque desvendar as causas do medo da morte, do medo da doença, do medo da velhice, do medo da natureza embravecida ou adversa nos torna esclarecidos e capazes de entender o curso dos acontecimentos. Com Séneca reflectimos sobre o que é a verdadeira felicidade, o bem supremo a que o homem aspira, e como se constrói, em cada dia e em cada gesto, sem tréguas nem cedências, harmonizando aperfeiçoamento próprio e atenção aos outros, em solidariedade e entreajuda. Com Séneca, avaliamos o verdadeiro peso dos bens materiais e em que limites nos pertencem, identificamos o que distingue a dignidade do opróbrio, o que torna um ser humano livre ou, ao invés, o acorrenta à servidão. Mas uma servidão que não é exactamente a submissão a um amo, ou a redução à escravatura, é muito mais do que isso: é quando se deixa que os erros, as cedências dúbias, os compromissos cinzentos, a cobardia, a indiferença pelos outros, o ódio ou a cobiça transformem o homem, do ser mais perfeito em que poderia constituir-se – vertical e puro nas suas escolhas e nos seus actos – no ser mais vil que tem como único objectivo o seu bem-estar ou a sua sobrevivência, seja qual for o preço que tiver de pagar por ela. Com Séneca identificamos a nossa verdadeira pátria, não o local onde nascemos ou vivemos, mas o mundo de que fazemos parte, parcelas de divindade que todos somos, iguais na matéria de que somos feitos. Com Séneca, percebemos a cadeia que une indissoluvelmente todas as paixões, do temor à ira, do ódio ao amor irracional, da angústia ao prazer, da inveja à cobiça, e como essas paixões conduzem inevitavelmente ao erro, ao mal, ao crime, por serem erros de julgamento, e como nos tornam irreversivelmente imperfeitos, quantas vezes mais cruéis que animais selvagens. Com Séneca, aprendemos que só a atitude com que acolhemos ou enfrentamos a morte pronuncia sobre nós e o que fomos um juízo definitivo. E porque habitualmente vivemos como se fôssemos imortais, e nos esquecemos de que não vivemos dias, mas os perdemos, de que o passado cresce à medida que o futuro diminui, de que cada dia que vivemos é partilhado com a morte, importa prepararmo-nos, dia a dia, para a serenidade e a constância, para a firmeza e a clemência, para a aceitação da morte como um porto seguro, onde se repousa e não há sofrimento.

Por isso é tão significativo que seja Tácito a contar-nos, nos Annales, sua obra maior, as derradeiras horas da vida de Séneca, e a constantia e serenidade com que encontrou a morte. Séneca não é, sequer, uma figura irrepreensível no relato de Tácito. O que não deixa senão de comprovar que o sapiens estóico se constrói em cada dia, numa caminhada em que a meta é chegar tão perto quanto possível da perfeição, mesmo com a certeza de que ao homem cabe a condição de proficiens, uma espécie de aprendiz que diariamente avança, que está atento aos recuos e hesitações que podem fazer-nos cair irreversivelmente no abismo do erro e da imperfeição.

Tácito admirou Séneca nos gestos com que ele pôs termo à vida, constrangido pela tirania de Nero. O filósofo viveu sob principes cruéis, e foi sobre eles que o historiador mais escreveu. Por isso, ler Tácito é entrar numa zona de sombra da alma e do comportamento humano, revelada em exemplos de recorte pessimista e desencantado, por contraste com alguns, ainda que poucos, exemplos luminosos a que a dignidade dá glória: a liberta Epícaris, que, brutalmente torturada, prefere matar-se a trair os nomes dos que conspiram contra Nero; o senador Trásea Peto, que abandona, em pesado silêncio, a sessão da cúria em que se votam medidas de regozijo pelo assassínio da mãe do imperador, para não ter de pactuar com semelhante abjecção; as três figuras imorredouras, avó, pai e filha, que se suicidam em conjunto, depois de darem todos os bens aos escravos que manumitem; Bárea Sorano e Servília, também pai e filha, que, em julgamento, chamam sobre si mesmos a culpa, que não têm, na vã tentativa de salvar o outro; a espantosa Agripina, que corre o perigo da navegação invernal, a urna com as cinzas do marido junto ao coração e os filhos a seu lado, para dar a Germânico as honras fúnebres que lhe devem em Roma; e outros, que o leitor de Tácito fixa, como todos os que são surpreendidos no seu quotidiano pela prepotência e a morte, posta ante oculos, para que não desviemos o olhar, e não esqueçamos.

Tácito toca-nos no mais fundo do nosso desconforto, desafia-nos a pensar em questões que bordejam a “banalidade do mal”, o dever da consciência, a função da memória, o juízo da posteridade e a verdade da história, ou a escolha entre ser bicho cruel ou ser humano, na guerra e na paz, em casa ou em sociedade, na busca do que pode definir a nossa dignidade e dar sentido à nossa existência, como só a grande literatura pode fazer.

  • MARIA CRISTINA DE CASTRO-MAIA DE SOUSA PIMENTEL

    Professora Catedrática

  • CURSO

    Licenciatura (1.º ciclo)

  • ÁREA

    Literaturas, Artes e Culturas

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